domingo, 9 de novembro de 2014

Ela faz cinema

A vi em um desses bares boêmios na Lapa há três semanas e dois dias. O relógio ultrapassava as vinte e duas e a noite era tão gelada quanto aquela cerveja que está descansando faz tempo no fundo do freezer. Tá, nem tanto. Mas carioca não é muito chegado ao frio e o inverno estava começando a chegar aqui no Rio de Janeiro, fazendo as pessoas colocarem as manguinhas para fora. No entanto, ali estava ela. Sentada sozinha naquele bar com música ao vivo, lendo um livro enquanto acompanhava com os lábios, ao mesmo tempo, a música de Chico Buarque que tocava ao fundo no palco improvisado. E com roupa sem manga. Me senti um idiota dentro daquele casaco de couro e por baixo de uma barba que protegia o meu rosto do vento frio que começava a me bater. E aquela mulher ali, sentada sob sua calça jeans e sua blusa regata estampada com Uma Thurman na capa de Pulp Fiction enquanto fumava um cigarro.
Custou para ela me notar enquanto eu a olhava sem discrições. Custou-me, em verdade, duas cervejas solitárias e um pastel de frango com catupiry até ela, por destino, acaso ou por força do meu pensamento, pousar os olhos em mim quando eu tentava manter o frango em minha boca, após morder o pastel quente. Ela riu. E quase não reparei em seus dentes tortos pois me ocupei demais em seus olhos verdes. Verde claro. E sua única covinha dançava no canto esquerdo de seu rosto enquanto ela ainda ria, tímida, revezando seu olhar entre mim e seu livro. Chico cedeu seu lugar à Elis Regina, a qual a moça continuava a saber cantar, e percebi que seu livro era sobre Woody Allen. E eu, que nunca fui muito fã do Woody Allen, assistiria a todos os seus filmes só pra discutir com ela. 
Depois de a entregar mais um sorriso sem graça, ela, por fim, levantou-se e veio até minha mesa, onde a convidei para sentar. E que fique pra sempre. 
A voz de alguma outra cantora de mpb, que eu desconhecia, surgiu no ar e ela, ao invés de cantar enquanto lia, deixou o livro de lado e adiantou uma conversa. Descobri que ela fazia cinema. E sua leitura era por conta de um trabalho sobre Woody Allen, mesmo ela me dizendo que gostava do trabalho do cara e se apressou em citar suas obras preferidas feitas por ele, enquanto eu resolvi ficar quieto. Vai que eu falasse que o acho superficial e ela ia embora de minha vida?
Mal entrou nesse meu mundo, pois não saia agora, não.
Contei da faculdade, dos meus projetos de publicidade, mostrei alguns trabalhos e falei sobre o cinema francês; ela adorava o cinema francês e disse que a fazia ter fé na vida. E eu, que só tinha assistido uns dois ou três filmes franceses, tratei logo de mudar o assunto. Tentei literatura, mas eu não tinha lido nada desde o fim de Harry Potter e ela devia engolir poetas dos quais eu nunca nem ouvi falar. E, quando eu achava que tudo estava perdido, num estilo "ela é demais pra mim", ela elogiou a minha camisa do Led Zeppelin e disse que Black Dog era uma de suas músicas favoritas. E então eu desandei a falar do meu gosto pelo rock dos anos 70 e do quanto ele mudou o mundo, e toda a minha empolgação arrancou, dela, alguns risos.
Comemos mais alguns pastéis, bebemos mais algumas cervejas, e eu ainda a emprestei o meu casaco de couro pois ela já estava arrepiada de frio e eu já estava pensando no quanto eu queria arrepiá-la de calor. Ela fumou mais um cigarro e eu, que sempre detestei aquele cheiro, achei lindo o jeito de ela soltar a fumaça pra fora da boca. Quis beijá-la. Quis pegar aquelas mãos que ela tanto gesticulava enquanto falava animada de algum de seus filmes favoritos que, por sorte, eu tinha visto. Quis pegar aquelas mãos e arrastá-las pra todo lugar. Quis ouvir mais até sobre Woody Allen e já havia prometido a mim mesmo que, assim que chegasse em casa, iria baixar todos os seus filmes.
E, enquanto eu me perdia em pensamentos a ouvindo falar sobre seu novo projeto que seria gravado no próximo mês, ela de repente se levantou. Já são quatro horas? Já são quatro horas! Ainda um tanto zonzo e confuso, a vi deixar um dinheiro em cima da mesa e dizer que tinha sido um prazer e, quando dei por mim... Ela estava indo embora.
- Espera, espera... Como faço pra te encontrar de novo?
A moça que fazia cinema fez, então, meu mundo desandar.
- Quem sabe a gente não se bate por aí qualquer hora dessas? - e o táxi, por fim, tomou distância.

Três semanas, dois dias, e nada de a gente se bater.
 

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