terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Esse mundo que dá voltas.

A Gabriela, em seus quatro anos, adorava desenhar. Não podia ver um giz de cera que já queria colorir a vida de algum espaço em branco. Seus traços não eram, nem de longe, retratos exatos dos cachorros que tinham na casa de sua avó no interior do Espírito Santo; mas quem iria corrigir um desenho da pequena Gabriela? Ela era miudinha e quase sumia em seus longos e loiros cabelos cacheados, e adorava ter sua pele tão branca para poder colorir a si mesmo quando não tivesse onde pintar. A mãe da Gabriela ficava louca com os riscos na parede da sala de estar; perdera as contas de quantas vezes mandou pintar e repintar o apartamento por culpa da filha que só queria saber de desenhar. Bem melhor e menos trabalhoso dar um banho na Gabriela do que repintar as paredes de casa toda vez que ela resolvesse, algo novo, criar.
O Pedro, quando era pequeno, usava o capacete de obra que o seu pai engenheiro levava para casa. Sua mãe contou 13 fotos nos álbuns do menino Pedro nos quais ele usa o inseparável capacete branco, que sambava no seu rosto magro e moreno, bronzeado pelo sol do Rio de Janeiro. No ensino médio, junto com sua barba, ia crescendo no Pedro uma facilidade incrível com as tais ciências exatas. E ele se aproveitava enquanto ensinava física para as colegas, explicando mal para as bonitas só para ter de explicar de novo e de novo. Suas notas eram altas e ele se vestia de engenheiro em toda festa a fantasia que precisava ir. No terceiro ano, o Pedro perdeu o pai em um acidente de carro no mesmo dia que descobriu que passou em primeiro lugar em Engenharia Civil na UFRJ. Essa vitória seria pro velho - era o que ele sempre dizia.
Nessas épocas, a Gabriela estava trabalhando em uma loja feminina no shopping mais famoso de Vitória, ajudando seus pais no pagamento da faculdade particular de Medicina. Coisa que ela detestava. Sabiam que a Gabriela, depois dos seis anos, começou a desenhar com mais exatidão? Quando chegou nos onze, então, os cachorros da casa da avó da Gabriela, aquela que morava ainda no interior, já estavam com detalhes que ninguém conseguia acreditar. Já não pintava mais paredes e nem o corpo - apesar de ter feito uma tatuagem escondida, aos quinze anos, na nuca, a qual sua mãe só descobriu dois anos depois. Nos dezesseis, a Gabriela, que não tinha cheiro de cravo e nem cor de canela, conseguia ganhar uma grana extra por fora com alguns de seus quadros que eram vendidos em uma galeria barata do centro da cidade e gostava de pichar muros quando brigava com os pais. Também havia pintado as paredes dos quartos de alguns amigos e eu queria ter conhecido ela naquela época só para ter o meu pintado também. Mas pobre Gabriela, quando se formou no colegial e disse que ia cursar artes visuais, todos riram da cara dela. Seus pais, nunca ricos, haviam se esforçado ao máximo para dar a ela uma boa educação. O mínimo que ela podia fazer ela realizar o desejo dos velhos e se formar em medicina. Que bonito. E ai dela se não realizasse. Então, lá foi a Gabriela fazer o vestibular e, graças ao bom ensino, passou na particular. E levou a prova para casa já que tinha desenhado um pássaro muito bonito no verso enquanto esperava o sinal bater.
O Pedro, um dos melhores alunos da faculdade, iniciou um estágio assim que ficou apto. Estudava de manhã, ia à obra de tarde e à noite ligava a televisão em qualquer filme cult que estivesse passando. Sua mãe  estava morrendo aos poucos desde que o câncer resolvera a assombrar e, alguns meses depois, haveria apenas uma fotografia dela emoldurada em algum porta retrato muito bonito, abaixo do antigo capacete de seu pai que estava pendurado na parede do quarto do rapaz. O Pedro não tinha mais tempo para namorar, o que deixava as garotas da faculdade um tanto chateadas. Que desperdício aquele rapaz alto, de pele dourada pelo sol da corrida na orla do fim de semana, e de corpo naturalmente musculoso viver para os estudos e trabalho. Elas morriam a cada vez que ele passava com seu caderno debaixo do braço, sem parar seus lindos olhos azuis em nenhuma delas. Pobre Pedro, de que valia a felicidade do sucesso sem ninguém para compartilhar?
No outro estado, a Gabriela levava bomba em qualquer matéria de medicina e isso a deixava irritada já que pagava para estar lá e odiava, enquanto vários outros alunos se matavam em cursinhos para ter a vaga dela. Mas ela não tinha culpa de encontrar a felicidade apenas nos quadros abstratos que fazia ou nas esculturas de argila que havia começado a fazer há alguns meses atrás. Fotografia também passava a se tornar um hobby e tomar o tempo que deveria estar sendo usado para gravar os nomes dos ossos que temos na mão. Mas suas mãos serviam para a arte, e não para a cura da dor de um desconhecido que entrasse no consultório e olhasse feio para a sua nova tatuagem que começava a crescer no pulso direito. Passava arrastada nos semestres e, a cada nota ruim, era um grito a mais de seus pais. A Gabriela havia, também, começado a namorar com um estudante de artes da universidade federal que era dois anos mais velho e isso irritava mais ainda seus pais, que tinham medo de ele desviar a garota de seu destino de ser médica. Bullshit. Já era tarde demais. O Fernando - namorado da Gabriela - influenciou tanto, mesmo sem querer, que a Gabriela largou medicina e deixou seus pais em lágrimas quando avisou que ia embora pro Rio de Janeiro estudar artes plásticas - não mais visuais - na universidade federal. Ela tinha passado no vestibular que fizera no mês anterior e tirou do banco todo o dinheiro que sobrava do trabalho, o qual ela vinha guardando há anos. Ia morar em uma casa com duas amigas que havia conhecido no ano novo em Santa Catarina, com as quais vinha mantendo a amizade desde lá. Chegando no Rio, ia procurar outro emprego e tocar a vida. E o Fernando? Mal entrou na história e já saiu.
O Pedro se formou com êxito e já tinha emprego na melhor empresa de engenharia do Rio de Janeiro. Sua vida estava mais calma e ele mais ranzinza e, de vez em quando, ele gostava de ir para a Lapa sentar em um bom barzinho com os colegas e ouvir música ao vivo, tentando achar uma felicidade.
A Gabriela havia se apaixonado pelo Rio e não parava de sorrir com seu novo curso. Enfim, livre das amarras do sonho dos pais... Porém, se sentia culpada. Quanta tristeza há em uma felicidade? Seus pais estavam longe, e tristes. Mas bola pra frente, Gabriela, um dia eles vão entender que a sua felicidade deveria fazer a deles. Enquanto isso, ela passava o tempo estudando, pintando e andando de skate pela orla de Copacabana.
Era uma segunda-feira - o Pedro odiava segundas-feiras - quando ele levantou da cama às seis horas, com o braço doendo por conta de um esbarrão com uma maluca de skate na orla no dia anterior, tomou um café forte e seguiu pra São Conrado para ajudar no primeiro dia da nova obra. Mas ele estava duas horas adiantado e, chegando lá, não tinha ninguém. Exceto por uma garota de short jeans, blusa largada e tênis encardido. Magra, palidamente saudável, e com cachos loiros contra o vento. Ela estava fazendo a assinatura do grafite que tinha terminado de fazer no muro e... Que absurdo. Pichar é proibido, não? Olhou ao redor mas a rua estava vazia. E o desenho estava tão bonito... Era o retrato da paisagem do mirante logo à frente, do outro lado da rua, com todo o mar iluminado pelo laranja do nascer do sol. Os pássaros pareciam sair do muro e voar pra cima dele. Mas que abuso.
- Ei, garota!
- Pois não?
A garota paralisou e, depois, virou para ele. Seria um policial? Ferrou. Mas o Pedro também paralisou. Era a maluca do skate que quase havia arrancado seu braço. E agora estava ali, pichando o seu muro. Tá, não era seu. Mas eles iam demoli-lo já que a obra seria grande.
- Ninguém te contou que pixar é proibido?
- Esse muro será destruído hoje... Não vê a placa? - A Gabriela (ele havia lido a assinatura) apontou para a placa que anunciava a data do começo da obra naquele terreno. É, ele sabia. Mas, mesmo assim, ficou sem resposta. A voz da garota, agora mais confiante, tinha uma delicadeza sutil e uma indiferença com os problemas, de quem estava satisfeito por ter feito o que queria. E como ele queria uma indiferença dessas.
A Gabriela estranhou tanto silêncio que pegou seu skate e foi embora, deixando aquele estranho completamente imerso em pensamentos. Sem saber que dali a dois meses, a foto daquela sua pichação estaria na internet e nos postes pela cidade enquanto o estranho procurava a Gabriela-dona-do-desenho. Sem saber que ele viria pedir para que ela pintasse a nova ponte que ele construíra no centro do Rio de Janeiro. Sem saber que conseguiria a fama com seus desenhos e esculturas, assim como o orgulho e felicidade de seus pais.
Sem saber, finalmente, que, dali a mais alguns meses, eles estariam fazendo, juntos, o que cresceram sonhando separados: o Pedro construindo uma vida para ambos enquanto a Gabriela se encarregava de colorir.
 

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